Audiência debate a criação de Centrais Especializadas e a inclusão do Oficial de Justiça na rede de proteção à mulher vítima de violência doméstica
O evento, uma iniciativa da senadora Augusta Brito (PT-CE), abordou também a necessidade de identificar a violência doméstica e o feminicídio por meio de dados e da atuação do Oficial de Justiça
A rede de proteção à mulher em situação de violência doméstica e familiar envolve diversos atores, mas um, em especial, que está no lar da vítima e do agressor, ainda não está incluído nessa rede de proteção: o Oficial de Justiça – servidor do Poder Judiciário responsável pelo cumprimento das medidas protetivas de urgência. Esse foi o cerne das discussões da audiência pública realizada no dia 28 de novembro, na Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado Federal. O evento abordou também a necessidade de identificar a violência doméstica e o feminicídio por meio de dados e da atuação do Oficial de Justiça.
A senadora Augusta Brito (PT-CE), presidente da Comissão de Combate à Violência Contra a Mulher, foi a autora do requerimento. Participaram dos debates a juíza auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Luciana Lopes Rocha; a diretora do Sindicato dos Oficiais de Justiça do Ceará (Sindojus-CE), Fernanda Garcia; o juiz do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), Tiago Dias da Silva; e o professor de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), Maurício Feijó Benevides de Magalhães Filho, sendo os dois últimos por videoconferência.
Também participaram das discussões a senadora Jussara Lima (PSD-PI); a senadora Soraya Thronicke (União-MS); a secretária-executiva de Políticas Públicas para Mulheres do Ceará, Liliane Araújo; e os presidentes do Sindojus do Distrito Federal e de Minas Gerais, Gerardo Lima Filho e Eduardo Rocha, respectivamente.
Ausência de dados
A senadora Augusta Brito explicou que a ideia de realização da audiência pública surgiu em agosto deste ano, durante o lançamento do livro “Feminicídio: mapeamento, prevenção e tecnologia”, o qual apresenta um panorama sobre o feminicídio em Fortaleza. A obra trata das formas de atuação, especialmente no Poder Judiciário, para prevenção por meio de uma proposta de avaliação de risco e ação integrada entre diversos órgãos, norteada por uma gestão de dados, mas não aborda, entretanto, a perspectiva da atividade do Oficial de Justiça, pois os pesquisadores não encontraram dados referentes à atuação desses servidores.
Fernanda Garcia, diretora do Sindojus, destacou que esse é um tema sensível para os Oficiais de Justiça, tendo em vista que é a categoria quem executa essas decisões judiciais e, portanto, acaba tendo um contato diário com esse tema tão delicado. “Somos o único servidor do judiciário que está na casa dessa mulher, dessa vítima, então a gente acaba tendo essa experiência in loco”, disse.
“A gente tem visto que a grande vantagem da Lei Maria da Penha foi essa especialização, em que a gente observa um atendimento voltado para o acolhimento dessas vítimas, então o que a gente quer é trazer essa discussão e mostrar: nós fazemos parte desse sistema, somos agentes públicos, fazemos parte do Poder Judiciário e podemos, sim, colaborar com a evolução dessas medidas”, complementou.
Centrais Especializadas qualificariam o atendimento e otimizariam o cumprimento das medidas
A celeridade no cumprimento desses medidas foi outro ponto de debate. Fernanda Garcia observou que muitas vezes a decisão demora para chegar à mão do Oficial de Justiça, que há um lapso temporal entre a decisão proferida pelo magistrado e o cumprimento do mandado. “A gente acredita que, assim como os Juizados Especiais, com as Varas Especializadas, também é importante a criação de Centrais Especializadas, onde o Oficial de Justiça vai poder otimizar essa distância entre a decisão e a execução, e vai poder ser qualificado para ter um acolhimento dessa vítima e a gente poder prevenir revitimização”, esclareceu.
Trata-se de mulheres que já estão fragilizadas, com um Oficial de Justiça batendo à porta, então como ela deve ser abordada? Muitas vezes, o primeiro contato que o agressor tem é com o Oficial de Justiça, dessa forma cabe a esses servidores da justiça alertá-los das medidas protetivas e das consequências de desobedecê-las.
“Se esse agressor não for preso em flagrante, o primeiro contato dele vai ser com o Oficial de Justiça, por isso a gente precisa de uma qualificação, de workshops, de treinamentos, de uma padronização em todo o país, porque às vezes em um estado é feito de uma forma e em outro não é feito, como a gente pode equalizar isso?”, questionou a diretora do Sindojus Ceará.
Oficiais podem contribuir com levantamento de dados qualitativos
Fernanda Garcia reforçou que o Oficial de Justiça faz parte desse sistema e também pode colaborar. Com Centrais Especializadas, ela ressaltou que esses servidores podem contribuir, inclusive, com o levantamento de dados qualitativos, e não só quantitativos, uma vez que ele está na casa dessas mulheres, em contato direto com elas. “Geralmente, cria-se um vínculo de confiança em que elas procuram o Oficial de Justiça. ‘– Ele está na minha casa descumprindo a ordem, o que eu faço?’ Hoje em dia as partes estão com o WhatsApp dos Oficiais de Justiça, então a gente tem a possibilidade de auxiliar o CNJ e toda essa discussão”, reiterou.
A diretora observou que uma atuação bem feita e capacitada por parte do Oficial de Justiça pode cessar o conflito de imediato. “Se o agressor compreender que não pode desobedecer a medida protetiva e as consequências do descumprimento a gente previne que essa situação se agrave enquanto não se finaliza o processo. Estamos aqui para colaborar e construir um ambiente de soluções. Essa é uma preocupação também dos sindicatos, porque o servidor tem que estar amparado, ele tem que ter condições físicas e materiais para poder bem desempenhar o seu papel”, disse.
Formulário nacional identifica os fatores preditivos de feminicídio
A juíza auxiliar da presidência do CNJ, Luciana Lopes Rocha, exaltou que a pauta daquela audiência era extremamente importante e que as medidas protetivas de urgência são o coração da Lei Maria da Penha, como instrumento de tutela jurídica. Ela diz que muitas mulheres relatam o descumprimento de medidas protetivas para o Oficial de Justiça, pedindo informações e orientações, “e informação é poder, informação é proteção”. E que há um formulário nacional aprovado pelo CNJ que identifica os fatores de risco preditivos de feminicídio, os quais precisam ser conhecido por todos.
“Se o Oficial de Justiça vai fazer uma intimação da vítima e percebe que ela está grávida, isso é um fator de risco preditivo de feminicídio. Se o oficial percebe que o autor dos fatos está embriagado, uso abusivo de álcool e drogas é fator de risco preditivo de feminicídio, isso tem que constar nas certidões circunstanciadas, porque com isso nós vamos fazer um monitoramento constante das situações vividas para que tenhamos um atendimento acolhedor e efetivo no atendimento jurisdicional”, salientou Luciana Lopes Rocha.
Nos casos de risco extremo, a magistrada ressaltou que não basta só a medida protetiva, é preciso aliar as políticas públicas de monitoramento com uso de tecnologia, daí a importância de o Ministério da Justiça fortalecer a fiscalização da medida com tecnologia, com uso de tornozeleiras eletrônicas, botões do pânico, fortalecer as visitas feitas por Policiais Militares com patrulhas Maria da Penha, toda essa ação protetiva aliada em rede. “A gente só resolve problema de grande complexidade como é a violência doméstica de forma interinstitucional, não há dúvida, e com muito diálogo com a sociedade”, disse.
A importância da atuação do Oficial de Justiça com segurança foi outro ponto destacado pela juíza auxiliar da presidência do Conselho. Ela afirmou que é preciso o apoio da Polícia Militar no acompanhamento dos Oficiais de Justiça, especialmente nas medidas de afastamento do lar. “É fundamental que o reforço policial venha autorizado pela autoridade judicial, caso o Oficial de Justiça venha a precisar. Nós temos que dar o suporte institucional para o cumprimento dessa missão tão importante dos Oficiais de Justiça”, reiterou.
Levantamento do quantitativo de Oficiais de Justiça no país
A falta de dados referentes ao quantitativo de Oficiais de Justiça no Brasil também foi abordado. A diretora Fernanda Garcia comentou que as entidades só possuem uma estimativa e que seria interessante que o CNJ realizasse esse levantamento, até para que possa haver uma qualificação desses servidores do judiciário. Disse ainda que considera extremamente relevante que os Oficiais de Justiça tenham acesso aos formulários nacionais de risco preditivos de feminicídios.
“Como dissemos, é o oficial quem vai à residência do agressor e da vítima, então ele tem a possibilidade, in loco, trazer esses dados qualitativos que estão presentes nos formulários, e a gente só vai ter acesso a isso se os Oficiais de Justiça forem inseridos nessa rede de proteção e passarem a compreender esses formulários, por meio de capacitações e treinamentos”, defendeu.
Sindojus solicita disponibilização de telefones institucionais aos Oficiais de Justiça
Presente ao evento, o presidente do Sindojus Ceará, Vagner Venâncio, interveio indagando a representante do CNJ sobre a possibilidade de ser feita uma orientação por parte do Conselho, que tem o controle administrativo sob os tribunais, para que sejam disponibilizados telefones institucionais aos Oficiais de Justiça de todo o país para o cumprimento das diligências previstas na Resolução nº 354/2020 – que dispõe sobre o cumprimento digital de ato processual.
Concordando com a solicitação, a juíza Luciana Lopes Rocha informou as unidades judiciárias já têm uma recomendação de que sejam dotadas de telefone para acelerar as intimações nesse sentido.
“De fato é uma demanda importante, vamos ver como a gente consegue encaminhar essa questão”, respondeu. Ela mencionou que, por ocasião de cursos promovidos pelo CNJ para Oficiais de Justiça do Distrito Federal, surgiu muito essa reclamação, de estarem utilizando os seus telefones pessoais e depois homens e mulheres entrarem em contato. “Tem a questão da proteção desses oficiais, com seus dados pessoais em contato com as pessoas, e precisamos de telefones institucionais”, assentiu.
Encaminhamentos
Vários encaminhamentos foram dados pela senadora Augusta Brito a partir da audiência pública, entre eles, o de levar a demanda de criação de Centrais Especializadas para o presidente do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), desembargador Abelardo Benevides. Realizar um seminário na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece) para todos os Oficiais de Justiça do Estado, com a presença da juíza auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Luciana Lopes Rocha, que já aceitou o convite, com o objetivo de que possam perguntar e colocar um pouco de suas demandas de trabalho. E a realização daquele mesmo debate na Comissão Permanente Mista de Combate à Violência contra a Mulher do Senado.
“Já existe um formulário e ele precisa ser repassado para o Oficial de Justiça. Além disso, tem a questão específica dos fatores de risco, que podem ser observados no cumprimento da medida protetiva. Como o oficial pode agir para prevenir e informar se tiver algum dos pontos de alerta que vão ser discutidos nesse seminário? A gente sabe que vai fazer diferença. Vamos nos unir para fortalecer essas ações que vão ajudar no combate ao feminicídio em todos os estados”, destacou Augusta Brito.
Agradecimentos
Tiago Dias da Silva, juiz do TJCE e pesquisador, concordou com os encaminhamentos e admitiu que é preciso envolver mais os Oficiais de Justiça nessas capacitações. “Essa audiência pública está sendo bastante rica no sentido de despertar em nós, que estamos participando desses grupos de trabalho, a necessidade de incluir cada vez mais a voz e a participação dos Oficiais de Justiça na construção dessas soluções. Parabéns à senadora Augusta Brito pela iniciativa, que com certeza vai render bons frutos”, elogiou.
A diretora do Sindojus, Fernanda Garcia, também agradeceu a senadora pela oportunidade fazer esse debate tão importante e reforçou que todos os pontos abordados foram extremamente relevantes. “É aquela união de esforços. Não se pode esperar que um problema complexo como esse seja resolvido por apenas um agente. Só com essa soma de esforços e de agentes encontraremos soluções”, concluiu.
Criação de Centrais Especializadas
A criação de Centrais Especializadas no cumprimento de mandados oriundos dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar é uma demanda que já foi apresentada à administração do TJCE. Em 2021, durante reunião com a desembargadora Marlúcia de Araújo Bezerra, presidente da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica do tribunal, a entidade defendeu que as centrais visam a um aperfeiçoamento e padronização na execução das medidas judiciais relacionadas à violência doméstica, oferecendo uma prestação jurisdicional mais ágil e eficiente. A proposta é de que esses servidores sejam capacitados para oferecer atenção e orientação de forma respeitosa e não preconceituosa, levando em consideração as dificuldades enfrentadas pelas mulheres que procuram ajuda institucional.
No ano passado foram expedidos, só na comarca de Fortaleza, 20.856 mandados oriundos dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Trata-se de medidas cumpridas por oficiais e oficialas de Justiça, por isso a importância de ações coordenadas que busquem dar maior celeridade ao cumprimento desses atos.