Em defesa da mulher

A cada 24 horas, 13 mulheres foram vítimas de violência em 2024. Ceará teve o maior registro desde a criação da Rede de Observatórios da Segurança

Neste Agosto Lilás, o Sindojus traz matéria especial com fala da oficiala Maria Sueli Sobrinho sobre a pena aplicada ao seu agressor, análise da antropóloga Jânia Aquino sobre essa crescente nos casos de violência doméstica e as frentes de atuação para reduzir esses índices

19/08/2025
Foto: Divulgação

A cada 24 horas, 13 mulheres foram vítimas de violência em 2024. É o que aponta o relatório “Elas vivem: um caminho de luta” divulgado em março deste ano, pela Rede de Observatórios da Segurança, a partir do monitoramento em nove estados brasileiros: Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo. Foram 4.181 vítimas registradas em 2024, o que representa aumento de 12,4% em relação a 2023. Os casos de feminicídio somaram 531 nos nove estados monitorados pela Rede – uma média de um a cada 17h. Foi registrado aumento de 22,1% dos homicídios (com exceção do Amazonas, que só passou a fazer parte do monitoramento em 2024). Em 70% dos casos, os feminicídios foram cometidos por companheiros e ex-companheiros. Ocorreram ainda 12 vítimas de transfeminicídio.

São Paulo registrou mais ocorrência de violência contra mulheres que os demais estados. Foram 1.177 – aumento de 12,4% em relação a 2023. Em seguida está o Rio de Janeiro, com 633 casos – 12 a mais do que no ano anterior. Os maiores e mais preocupantes índices ficaram com o Maranhão e Pará, com alarmantes 87,2% e 73,2%, respectivamente. Depois está o Ceará, com alta de 21,1% – o período mais violento nos últimos sete anos. Piauí fechou as unidades federativas que apresentaram acréscimo de casos – 36 a mais que os 202 registrados em 2023. Reduziram os números a Bahia, com 30,2%, e Pernambuco, com 2,2%.

Ceará teve o período mais violento dos últimos sete anos

Um dado que chamou a atenção é que o Ceará teve o maior registro de violências contra mulheres desde a criação da Rede de Observatórios. Os 207 casos registrados no Estado fizeram de 2024 o pior período desde a criação da Rede de Observatórios, em 2020. Em comparação com 2023, o aumento foi de 21,1%. Os feminicídios também aumentaram: de 42 para 45. A maioria das fatalidades tinha mulheres entre 18 a 39 anos. Parceiros e ex-parceiros cometeram 56 das violências. O Estado também registrou um caso de transfeminicídio.

“A indignação diante desses crimes também é uma realidade no Ceará e precisa se refletir na formulação, execução e monitoramento de políticas públicas, que ainda falham em reduzir os números e em compreender as estatísticas como trajetórias de vida que exigem justiça e reparação”, destaca o documento.

Não é seguro ser mulher no Brasil. A violência atinge mulheres de diferentes classes, raças e gerações. Muitas vezes invisibilizada, essa violência compromete a dignidade, além de trazer impactos à saúde física e mental.

Foto: Divulgação

Oficiala agredida em pleno 8 de março considera a pena do seu agressor branda

Em pleno 8 de março, Dia Internacional da Mulher, a oficiala de Justiça Maria Sueli Sobrinho sofreu uma agressão covarde enquanto cumpria um mandado de intimação em Ibirité, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Na ocasião, ela foi atacada com uma cabeçada no rosto por um sargento da Polícia Militar de Minas Gerais, padrasto do destinatário da ordem judicial. No último mês de julho, a justiça condenou o agressor a 2 anos e 9 meses de reclusão em regime aberto, além da prestação de serviços comunitários e pagamento de multa pelos crimes de lesão corporal qualificada por razões de gênero, falsa identidade, desacato e resistência.

Sueli afirma que ficou satisfeita com a celeridade do julgamento, que ocorreu em quatro meses. “Foi uma resposta rápida para o meu caso”, avalia. Em relação à pena, no entanto, no seu sentir como vítima, considerou a condenação branda, tendo em vista a brutalidade da agressão. Daquele dia 8 de março para cá, a servidora do Judiciário conta que muita coisa mudou em sua vida e que os danos psicológicos superam muito os danos físicos, que foi a fratura no nariz.

“Sempre fui muito uma pessoa segura e esse episódio abalou demais a minha segurança. Fico com aquela sensação de que algo ruim vai acontecer a qualquer momento, mas estou tendo acompanhamento psicológico e acredito que, com fé em Deus, eu vou superar isso de forma definitiva em pouco tempo. Eu sei que a gente não pode controlar o que nos acontece, mas podemos decidir como iremos lidar com isso e esse acontecimento horrível não irá me definir de forma alguma”, reforça.

A rotina faz com que o Oficial de Justiça normalize o risco que ele corre todos os dias, diz Sueli

Quanto ao cumprimento dos mandados, Sueli disse que está mais atenta e que a rotina faz com que o Oficial de Justiça normalize o risco que ele corre todos os dias. “Na nossa profissão a gente fica à mercê da insanidade alheia, então devemos estar em alerta a todo momento, seja no cumprimento de um mandado simples, de intimação, seja no cumprimento de medidas constritivas, porque o risco é constante. Todo Oficial de Justiça que está nas ruas sabe que o risco é constante”, frisa.

E ela, que contou que sempre foi muito aguerrida e confiante, diz que hoje entende quando mulheres não denunciam, mas reforça que é preciso deixar o medo e a vergonha de lado e denunciar todo e qualquer tipo de agressão, tanto a escancarada, como a que sofreu, como a subliminar, que não parece uma agressão, mas que acaba sendo.

“É preciso se posicionar ao primeiro sinal de agressão. É difícil assumir que fomos agredidas, parece que tira um pouco da nossa dignidade, mas nós mulheres não podemos deixar que homens se valham da superioridade física que eles têm para nos anularem, de forma alguma podemos deixar”, reitera.

Na avaliação de Sueli, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), que neste mês de agosto completou 19 anos, representa um grande avanço no combate à violência contra a mulher, contudo pondera que ainda há lacunas que precisam ser preenchidas para de fato haver efetividade no combate à violência de gênero. A oficiala defende que é preciso haver uma combinação de políticas públicas que perpassem ações de incentivo a denúncias e relacionadas ao apoio institucional às vítimas, “porque há vergonha, há medo e tendo esse apoio institucional elas vão se sentir mais seguras e de fato haverá um encorajamento quanto à denúncia dos agressores”, frisa.

Diretora Fernanda Garcia durante audiência pública no Senado que debateu a criação de Centrais Especializadas e a inclusão do Oficial de Justiça na rede de proteção à mulher vítima de violência doméstica. Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

O enfrentamento à violência doméstica deve ser considerado política de estado e não de governo, defende Fernanda Garcia

Fernanda Garcia, diretora do Sindicato dos Oficiais de Justiça do Ceará (Sindojus-CE) que faz dissertação de mestrado sobre a atuação dos Oficiais de Justiça no combate à violência doméstica e familiar, observa que hoje há um maior conhecimento da Lei Maria da Penha, o que considera um fato positivo, pois faz com que as mulheres procurem as instituições para pedir ajuda, entretanto, ainda assim, acrescenta, observa-se uma crescente no número de feminicídios. Na sua concepção, a violência contra a mulher no Brasil está relacionada com a formação da sociedade e com o patriarcado, que ainda é extremamente enraizado no país.

Para fazer frente a esse problema tão complexo, Fernanda afirma que é preciso atacar por várias vertentes e reforça a necessidade de o enfrentamento à violência doméstica ser considerado política de estado e não de governo, com foco na formação e educação das meninas e dos meninos.

“A gente tem uma legislação muito boa, elogiada em todo o mundo, ela teve esse cuidado de ser mais abrangente, mas não basta só punir, essa é apenas uma das formas de prevenção à violência”, ressalta.

Compartilhando da mesma frustração de Sueli, a dirigente comenta que essa realidade só será mudada quando a sociedade como um todo der uma reposta. “Muitas vezes, as próprias redes sociais e a imprensa têm um efeito positivo quando mostram que esse tipo de conduta não cabe, que é inaceitável, reprovável”, salienta. Fortalecer as instituições com políticas públicas permanentes e a constante capacitação de todos os profissionais envolvidos na rede de proteção à mulher são formas de melhorar os índices de violência contra a mulher, aponta Fernanda.

“Nós temos delegacias especializadas, promotorias especializadas, defensorias especializadas, que a gente continue nesse caminho de especializar, capacitar, melhorar para que essas mulheres se sintam cada vez mais amparadas e em condições de lutar para buscar essa dignidade, porque o que um agressor faz, muito mais do que agredir fisicamente, é uma ferida na dignidade, na pessoa humana. Isso acaba com famílias, com mulheres, com as crianças, os reflexos são em todos”, constata.

Foto: Arquivo pessoal

É preciso modificar a perspectiva de se observar as relações de gênero, avalia a antropóloga Jânia Aquino

Na visão da antropóloga Jânia Perla Diógenes de Aquino, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), os dados da violência contra a mulher seguem alarmantes no país, porque ainda não foi modificada a perspectiva de se observar as relações de gênero: homem e mulher. Ela acrescenta que o que se espera da mulher ainda está muito associado ao cuidado, ao cuidado generalizado, à monopolização das atividades domésticas e ao cuidado dos filhos, e aos homens está associado à função de provedor, à força, à masculinidade.

“A gente vive nessa cultura em que essa divisão de trabalhos altamente imperfeita, que oprime, coloca a mulher nessa caixinha de submissão, ainda está muito presente e se reveste em conflitos familiares, porque as mulheres estão cada vez estudando mais, cada vez mais tendo consciência dos seus direitos e a mentalidade masculina tem demorado a mudar, então esses conflitos acabam ainda tendo como encaminhamento a violência”, explica.

Jânia fala da importância de ter medidas voltadas para modificar a cultura em relação à punição dos acusados, cursos de formação, atendimento psicológico às vítimas e terapias de casal gratuitas para que esses sentimentos de conflitos não se redundem em um ódio a dois, o que torna a violência em muitos casos letal e danosa. Em termos de estrutura, ela sugere a criação de mais Delegacias de Defesa da Mulher, as quais estão em quantidade insuficiente, além de as mulheres geralmente passarem por constrangimento, demorarem na fila, entre outras dificuldades operacionais.

“O que mantém essa violência alta é essa perspectiva de gênero que relega a mulher a uma condição de submissão e ao homem uma afirmação da sua masculinidade pela força, a gente ainda vê isso no cinema, na teledramaturgia, para citar alguns exemplos. Isso ainda é o que mantém essa visão disseminada na sociedade e esses números tão altos, e que assegura a continuidade de tanto sofrimento para as vítimas, para os agressores, para os filhos, para toda a família. É muito importante tanto no plano de uma mudança de ideias, como se investir em atendimentos psicológicos, contextos, fóruns de mediação de conflitos, em transformar essa tendência, esse grito, em diálogo. Transformar sentimentos destrutivos em capacidade de pensar, raciocinar, isso seria muito importante em nível de política pública”, sugere.

Culto à masculinidade tóxica faz com que as relações de gênero ainda sejam tão opressoras para as mulheres, frisa a especialista

Embora se tenha uma educação pautada em conteúdo, a especialista acrescenta que nós não aprendemos, sobretudo, os homens, a lidar com sentimentos de contrariedade, em alguma situação que essa masculinidade não é reiterada, não é celebrada, e isso redundar em violência.

“Aceitar ser contrariado sem se sentir ofendido ou diminuído, então são esses elementos de um culto a uma masculinidade tóxica que fica subjacente em diversos setores da sociedade, que faz com que as relações de gênero ainda sejam tão opressoras para as mulheres e que faz com que a sua condição de submissão, de ter as suas possibilidades na vida doméstica, nos espaços de trabalho, em todos os contextos, ser minadas por esse machismo estrutural”, esclarece.

Foto: Reprodução Diário do Nordeste

A professora complementa que isso tem a ver com elementos no campo da cultura e também no campo de uma educação, sobre como lidar com os sentimentos. “Tem a ver com a falta de mecanismos na sociedade que sejam propulsores de inteligência emocional, educação de transformar emoções destrutivas e violentas em diálogo, reflexão, em recorrer à empatia, penso que são esses elementos que precisam receber uma atenção e ser contemplado em políticas públicas”, afirma.

Mas por que toda essa violência de gênero? Na concepção da antropóloga, ela é contra o feminino, contra as mulheres e também contra a população LGBTQIA+, principalmente aqueles que são considerados afeminados. “Quando uma mulher sai do que se espera, do cuidado não remunerado e generoso ou quando tem uma postura mais impositiva ela é a louca, estressada, malvada, então há essa tendência a vilanizar mulheres, a estigmatizar. As mulheres que se destacam em seu ambiente de trabalho são alvo de campanhas de difamação misóginas chegando a esses casos extremos em que homens não têm o menor pudor de agredir até fisicamente”, diz se referindo ao caso da Oficiala de Justiça Maria Sueli.

A especialista diz ainda que a violência física quase sempre reflete valores interiorizados, que é quando se tem uma misoginia, um machismo estrutural que tem se refletido em letalidade, em agressão física e impactado na saúde mental das mulheres, em campanhas de estigmatização, de vilanização. “Mesmo estando em casa ou no trabalho, a integridade física e mental das mulheres e também da população LGBTQIA+ está muito mais vulnerável do que alguém identificado como masculino”, observa.

Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Sindojus participará de evento no Senado sobre as causas e soluções para o enfrentamento à violência doméstica

Atendendo ao convite feito pelo presidente do Senado Federal, Davi Alcolumbre, o Sindojus participará, no dia 26 de agosto, da Sessão de Debates Temáticos sobre as causas do aumento dos casos de feminicídios e soluções para enfrentar os problemas da violência doméstica e familiar contra a mulher. O evento será realizado, às 10 horas, no Plenário do Senado Federal e contará com a presença do presidente Vagner Venâncio e da diretora Fernanda Garcia.

Agosto Lilás

Entre os mecanismos institucionais de proteção às mulheres que foram criados para coibir, prevenir a violência contra as mulheres e punir o agressor está:

  •  A criação, em 1985, das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs);
  • A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340), em 7 de agosto de 2006;
  • A tipificação do feminicídio como crime (Lei nº 13.104/2015);
  • Em 2022, foi criada ainda a Lei 14.448 – que institui, em âmbito nacional, o Agosto Lilás como mês de proteção à mulher, destinado à conscientização para o fim da violência contra a mulher.

Violência contra a mulher é crime. Denuncie!
Central de Atendimento à Mulher – 180

*Com informações do relatório “Elas vivem: um caminho de luta”, da Rede de Observatórios da Segurança.

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Luana Lima

Jornalista

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