Extinção do cargo de Oficial de Justiça é inconstitucional
No artigo de opinião publicado no dia 11 de julho, no site Consultor Jurídico, o advogado Daniel Amin e o presidente da Unioficiais, Gerardo Lima, falam sobre a essencialidade desse cargo para o sistema de justiça e a importância do debate jurídico desse desmonte silencioso que vem ocorrendo no judiciário
Por Daniel Amin
Gerardo Alves Lima Filho
Nos últimos anos, uma das alterações ocorridas em alguns tribunais tem gerado grande perplexidade: a extinção do cargo de Oficial de Justiça. Isso pela improvável hipótese de se extinguir um cargo público fundamental no sistema de Justiça, com enorme importância social atual e que possui funções tão antigas quanto a própria existência do Poder Judiciário. No Brasil, basta lembrar que no artigo 156 da Constituição do Império de 1824 já havia previsão da responsabilidade dos juízes de direito e dos “officiaes de justiça”. Entretanto, por mais inusitada que possa parecer a extinção do cargo de Oficial de Justiça, ela já ocorreu em cinco tribunais de Justiça (TJ-PR, TJ-SE, TJ-MS, TJ-TO e TJ-AM). É bem verdade que nos outros 87 tribunais do país (federais e estaduais) o cargo continua existindo normalmente, ainda que com variações na organização. De qualquer forma, mesmo que como exceção, esse desmonte silencioso do paradigma judiciário não pode permanecer imune ao debate jurídico.
E o primeiro ponto dessa alteração que provoca perplexidade diz respeito à forma como os mandados judiciais estão sendo cumpridos nesses tribunais. Sobre essa questão, uma primeira premissa pode ser firmada: as funções dos Oficiais de Justiça permanecem com substancial relevância atual. Isso porque os cargos efetivos estão sendo extintos por meio da criação de cargos comissionados e funções de confiança para que outros agentes públicos (concursados ou não) realizem as tarefas próprias dos Oficiais de Justiça. Em nenhum dos casos, o cargo foi extinto por ausência de demanda ou por obsolescência.
Ainda assim, uma alteração de tal magnitude na estrutura do Poder Judiciário precisa de verificação quanto ao modelo engendrado pela Constituição (CF). Ademais, faz-se necessário examinar se essa modificação gera benefícios para a sociedade.
A esse respeito, importante ressaltar que a regra geral para a estruturação dos agentes públicos estabelece que a nomeação para cargo público ocorre após aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos (artigo 37, II). O objetivo é garantir acesso isonômico a todos, ao mesmo tempo em que se viabiliza a seleção dos candidatos mais qualificados a fim de se prestar um serviço público de qualidade.
A exceção a essa regra se dá nos casos de designação para funções de confiança (exclusivas para servidores) e para cargos em comissão (não exclusivos de servidores), hipóteses em que a autoridade pode livremente nomear e exonerar (artigo 37, V) porque envolvem questões que dependem de um vínculo de confiança entre a autoridade e o servidor. Todavia, apenas pode haver funções de confiança e cargos em comissão para desempenhar atribuições de direção, chefia e assessoramento (artigo 37, V).
Esse arquétipo evidencia as premissas básicas para a configuração dos servidores públicos no Brasil. A grande maioria dos servidores ocupa um cargo efetivo e desempenha as atribuições inerentes a ele previstas em lei. De outro lado, como exceção, para atividades de direção, chefia e assessoramento podem ser designados servidores efetivos (que perceberão uma retribuição pecuniária pelo desempenho de uma função de confiança) ou servidores comissionados (percebendo a remuneração própria prevista para o cargo).
Isso posto, não há nenhuma dúvida com relação à inconstitucionalidade da extinção do cargo de Oficial de Justiça por meio da destinação das suas atribuições para outros servidores efetivos com função de confiança ou mesmo para servidores comissionados. Deveras, o Oficial de Justiça não exerce atribuições de direção, chefia e assessoramento, razão pela qual suas atividades não podem ser desempenhadas por meio de funções de confiança e cargos comissionados.
O trabalho do Oficial de Justiça é solitário e autônomo. Ele não dirige nem chefia as atividades de nenhum outro servidor. Ao mesmo tempo, o oficial não assessora ninguém; ele pratica atos com autonomia no processo, assinando em nome próprio (e assumindo as responsabilidades correspondentes) suas certidões, autos, laudos etc.
Sabe-se que o Oficial de Justiça em alguns tribunais no passado percebeu função de confiança diante da ausência de verba específica relacionada com os riscos, desgastes e dificuldades do trabalho externo, mas essa questão no geral foi corrigida (naturalmente, os direitos adquiridos nesse período devem ser resguardados, conforme definido, por exemplo, na Lei nº 11.416/2006 e em suas alterações).
Atribuições do Oficial de Justiça
O cargo de Oficial de Justiça possui atribuições técnicas de aplicação do direito, por meio da prática de atos processuais com elevado grau de complexidade que demandam conhecimento jurídico. Integra o feixe de atribuições do cargo realizar citações, intimações, notificações, afastamentos do lar, despejos, reintegrações de posse, prisões, conduções coercitivas, arrestos, penhoras, buscas e apreensões, avaliações, entre outros atos processuais previstos na legislação processual civil, penal, trabalhista, militar, eleitoral etc., por meio do cumprimento de mandados. Nenhuma dessas atribuições possui qualquer relação com atividades de direção, chefia e assessoramento.
Diante da clareza dos dispositivos constitucionais que tratam do tema, resta a dúvida acerca das razões que permitiram que a extinção do cargo de Oficial de justiça ocorresse em alguns tribunais. E mais do que isso, é importante buscar entender qual é o pensamento do STF sobre a utilização de funções de confiança e cargos em comissão com esse propósito.
No julgamento da ADI 4.317/PR, o STF permitiu que técnicos judiciários (servidores que desempenham tarefas internas de suporte técnico e administrativo) exercessem no TJ-PR a função de Oficial de Justiça desde que houvesse a utilização de critérios objetivos para a escolha.
O objetivo do texto não é aprofundar cada um dos julgados, mas se percebe que houve uma contradição na própria decisão porque ela reconhece que o cargo de Oficial de Justiça é incompatível com atividades de direção, chefia e assessoramento, mas permite uma espécie de concurso interno (vedado pela CF para assunção de cargo público) para assumir essa nova “função” (no paradigma da Constituição não existe função de confiança que não seja para direção, chefia e assessoramento), o que configuraria ascensão funcional ou transformação de cargo público de maneira temporária mediante concurso restrito para os servidores do tribunal (todas essas figuras vedadas no ordenamento jurídico atual).
Deveria ter incidido na espécie a Súmula Vinculante nº 43 do próprio STF: “É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido.” Esse enunciado sumular reflete a jurisprudência consolidada do STF (ADI 5.817, por exemplo).
O CNJ também se manifestou sobre o tema e seguiu a linha de conferir excessiva autonomia aos tribunais. No Pedido de Providências nº 0010553-09.2018.2.00.0000, em que foi debatida a extinção do cargo de Oficial de Justiça no Tribunal de Justiça do Tocantins, entendeu-se pela impossibilidade de intervenção do Conselho porque a matéria estaria inserida na autonomia dos tribunais. Inclusive, na fundamentação do julgado houve a comparação do cargo de Oficial de Justiça com o de escrivão e com o de diretor de secretaria por todos exercerem atribuições “auxiliares” à Justiça, na linguagem do CPC.
Contudo, os cargos de escrivão e de diretor de secretaria evidentemente se encaixam na noção de direção, chefia e assessoramento (ou seja, com permissão constitucional para serem exercidos por meio de funções de confiança e cargos em comissão) porque, entre outras atividades atribuições, gerenciam os servidores do cartório. De outro lado, os Oficiais de Justiça não possuem qualquer atribuição de direção, chefia e assessoramento, de modo que não há autorização constitucional para que sejam exercidos por funções de confiança e cargos em comissão.
Acrescente-se que a Constituição não confere tamanha liberdade ao administrador. A autonomia dos tribunais possui sua importância, mas encontra limites na Carta e nas demais leis. Em nenhuma hipótese tal prerrogativa pode ser interpretada como poder absoluto de burlar o modelo constitucional de preenchimento de cargos públicos. Essas leis de extinção do cargo de Oficial de Justiça configuram hipótese de inconstitucionalidade “chapada”.
STF é contra comissionados como Oficiais de Justiça
E não se mostra difícil demonstrar que o Supremo possui firme jurisprudência nesse sentido. Por exemplo, na ADI 3.174 (também nas ADIs 1.141 e 1.269), o STF se manifestou expressamente no sentido da inconstitucionalidade da criação de cargo em comissão para exercer as atribuições de Oficial de Justiça. Nessa ocasião, asseverou o ministro relator, Luís Roberto Barroso:
“Não tenho dúvida quanto à inconstitucionalidade da criação dos dois primeiros cargos. As funções exercidas pelos Oficiais de justiça e oficiais de Secretaria fazem parte da estrutura permanente do Poder Judiciário, não exigem vínculo de confiança e não são funções de diretoria, chefia ou assessoramento. A criação desses cargos, portanto, constitui violação à regra do concurso público (art. 37, II, CF/88) e contraria as hipóteses constitucionais de instituição de cargos comissionados na Administração Pública (art. 37, V, CF/88). A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que só podem ser criados cargos em comissão quando suas atribuições exijam um vínculo de confiança entre seus ocupantes e aqueles que os nomeiam. (ADI 3.247, Plenário, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. em 23.08.2019)”
Então, com decisões em linhas distintas, importante tentar verificar se a jurisprudência do STF permite critérios mais seguros para balizar o intérprete no tema. Essa resposta foi construída no tema de Repercussão Geral nº 1.010, decorrente do RE nº 1.041.210/SP. Nessa oportunidade, o STF definiu os seguintes requisitos constitucionais para a criação de cargos em comissão:
“a) A criação de cargos em comissão somente se justifica para o exercício de funções de direção, chefia e assessoramento, não se prestando ao desempenho de atividades burocráticas, técnicas ou operacionais;
b) tal criação deve pressupor a necessária relação de confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado;
c) o número de cargos comissionados criados deve guardar proporcionalidade com a necessidade que eles visam suprir e com o número de servidores ocupantes de cargos efetivos no ente federativo que os criar; e
d) as atribuições dos cargos em comissão devem estar descritas, de forma clara e objetiva, na própria lei que os instituir.”
Ora, o STF esclareceu em âmbito de repercussão geral aquilo que está claro na Constituição. Os cargos em comissão somente podem ser criados para funções de direção, chefia e assessoramento. Sobre esse ponto, apenas um complemento se faz necessário. Tanto as funções de confiança quanto os cargos em comissão apenas podem ser instituídos para funções de direção, chefia e assessoramento. Na espécie, incide o brocardo latino “Ubi lex non distinguir nec nos distinguere debemus” (onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir).
A inconstitucionalidade, portanto, é evidente. Mas é importante também examinar se as medidas adotadas atendem o interesse público. Com efeito, ainda que a extinção do cargo de Oficial de Justiça viole a Constituição, a análise sobre eventuais alterações na disciplina desse agente público também se mostra relevante.
Nesse sentido, o primeiro ponto a ser considerado é que o cargo de Oficial de Justiça não se apresenta de nenhuma maneira como obsoleto. Muito pelo contrário, para apresentar dois de muitos exemplos possíveis, são os Oficiais de Justiça os agentes públicos responsáveis pelo cumprimento das medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha, contribuindo decisivamente com o enfrentamento da violência doméstica, um dos maiores problemas sociais do país atualmente.
Outrossim, são os Oficiais de Justiça os encarregados por garantir efetividade nas execuções, inclusive fiscais, o maior gargalo do Poder Judiciário, de acordo com os relatórios do CNJ. E a modernização do cargo, com acesso a novos sistemas e ferramentas eletrônicas de investigação e constrição patrimoniais, é fundamental nesse contexto.
Acrescente-se que o trabalho do Oficial de Justiça envolve a aplicação da justiça de forma indistinta para todos os cidadãos do País, desde os considerados mais simples até os detentores de maior poder político e econômico. Delegar atribuições com poder de definir um processo por uma penhora e avaliação multimilionária, por exemplo, pode gerar receio de represálias para aqueles que possuem vínculo frágil com a administração.
Não se pode olvidar ainda que os Oficiais de Justiça praticam atos que envolvem questões de segurança, como por exemplo alvarás de soltura nas penitenciárias. Grandes organizações criminosas podem se valer de pessoas com vínculo frágil com a administração para realizar uma perigosa cooptação com riscos graves de liberação indevida de presos.
Da mesma forma, alegações de que essas medidas reduziriam custos e concederiam maior eficiência para o Judiciário não fazem sentido. Em primeiro lugar, porque o custo tem sido muito maior com essas transformações indevidas, uma vez que é necessário pagar uma gratificação específica e mais a verba indenizatória para o servidor que passa a cumprir os mandados.
Isso além do fato de contar com servidores muito menos qualificados para as atribuições, o que compromete o serviço prestado pela justiça. Cada ato processual anulado provocado por um servidor despreparado para o cargo representa prejuízo de grande monta e anos de trabalho desperdiçado de todos os atores processuais.
Por fim, devidamente demonstradas a inconstitucionalidade da extinção do cargo de Oficial de Justiça e a absoluta contrariedade ao interesse público dessa medida, conclui-se que há a necessidade de recriação do cargo em todos os tribunais que realizaram sua extinção, bem como de suspensão de qualquer procedimento iniciado com esse escopo.
Para além disso, mostra-se de grande relevância a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional nº 23/2023, que insere os Oficiais de Justiça na Constituição como função essencial à Justiça. Nessa proposição legislativa subscrita por 184 parlamentares, a CF deve incorporar o seguinte texto: “Oficial de justiça é carreira típica de Estado, exclusiva de bacharel em Direito e imprescindível para assegurar o regular andamento dos processos judiciais e a tutela jurisdicional, nos limites da lei”. O futuro da justiça depende de servidores qualificados.
Daniel Amin Ferraz
é advogado titular de Amin Ferraz, Coelho & Thompson Flores Advogados e mestre e doutor em Direito Internacional, professor do Doutorado do UniCEUB.
Gerardo Alves Lima Filho
é Oficial de Justiça do TJDFT, presidente da União dos Oficiais de Justiça do Brasil (sindicato do DF/associação nacional), especialista em Direito pela ESMA/DF e mestre em Direito pelo UniCEUB.