A moralidade administrativa e a “queda de braço” da isonomia no judiciário alencarino
Desde os meus primeiros ensinamentos jurídicos-doutrinários, e posteriormente em pós-graduação atinente ao tema, que o estudo da Administração Pública me consome cada vez mais tempo, não por entendê-lo complexo, ou de difícil elucidação, mas por ver, recorrente e flagrantemente, os atropelos e abusos cometidos, sobremaneira quando se trata de direitos da serviçaria pública.
Encontro-me constantemente em conflito frente ao estudo do Princípio Constitucional da Moralidade Administrativa. Para Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Moral tem a seguinte definição: “Moral. [Do lat. Morale, ‘relativo aos costumes’.] S.f. 1. Filos. Conjunto de regras de conduta consideradas como válidas, quer de modo absoluto para qualquer tempo ou lugar, quer para grupo ou pessoa determinada. (…) 3. O conjunto de nossas faculdades morais; brio, vergonha.” [1]
Assim sendo, a moralidade administrativa é princípio informador de toda a ação do administrador público, sendo-lhe defeso o agir dissociado dos conceitos comuns, ordinários, válidos atualmente e desde sempre, respeitadas as diferenças históricas, do que seja honesto, brioso e, sobretudo, justo.
“A moralidade administrativa constitui hoje o pressuposto da validade de todo ato da Administração Pública (Const. Rep., art. 37, caput). Não se trata – diz Hauriou, o sistematizador de tal conceito – da moral comum, mas sim de uma moral jurídica, entendida como “o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração”. [2]
O agente administrativo, como ser humano dotado da capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o honesto do desonesto, e não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta, nem tendo que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto.
Por considerações de direito e de moral, o ato administrativo não terá que obedecer somente à lei jurídica, mas também à lei ética da própria instituição, porque nem tudo que é legal é honesto.
A construção da teoria do princípio da moralidade está diretamente vinculada aos freios a serem impostos aos agentes públicos na execução dos poderes discricionários, surgida e desenvolvida junto à idéia de desvio de poder, que em suas duas espécies denominadas excesso de poder e desvio de finalidade é que fixou a dimensão da teoria da moralidade administrativa como forma de limite à atividade discricionária da administração pública que, utilizando-se de meios, quase sempre, subreptícios, busca a realização de fins de interesses privados ou mesmo de interesses públicos estranhos às previsões legais, ou destinações diversas do pretendido.
É Wallace Paiva Martins Júnior quem bem esclarece a teoria do desvio de poder:
“Assim, “desvio de poder é, por definição, um limite à ação discricionária, um freio ao transbordamento da competência legal além de suas fronteiras, de modo a impedir que a prática do ato administrativo, calcada no poder de agir do agente, possa dirigir-se à consecução de um fim de interesse privado, ou mesmo de outro fim público estranho à previsão legal”. [3]
Refiro-me a este fato, o do freio que deve conter o administrador, plasmado ainda com a recente publicação de portaria em 26/8/2013, da lavra do Exmo. Sr. Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, em que “concede” gratificação por Trabalho Técnico Relevante a um servidor de cada vara de comarca interiorana, como forma de mascarar e legalizar a “bajulação”e o favoritismo no serviço público, prática desabonadora dos princípios da impessoalidade e da transparência administrativos.
Houve inequívoco desvio de finalidade por parte da administração do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, tendo em vista o aporte financeiro, a título de suplementação orçamentária, bem assim pelo fato de que a requisição orçamentária oficiada ao Poder Executivo tinha como uma das finalidades a solução da distorção vencimental entre os servidores da capital e interior no judiciário alencarino, haja vista que R$28.000.000,00(vinte e oito milhões) deverão ser destinados a pessoal e encargos sociais, da folha normal do TJ.
O desvio reside na anormalidade da famigerada e hostil GTR. Tal gratificação não pode e não deve ser vista pela administração do TJ-CE como “normal”, pois sua própria natureza excede, vaza, extrapola o conceito de folha normal de pessoal, salvo entendimento contrário, o de que o poder da caneta, do veto, da perversidade administrativa pela simples natureza do injusto, seja capaz de relegar 1/3 dos servidores efetivos da Casa da Justiça cearense a vagarem rumo ao desamparo, relegados a uma incerteza jurídica que não atende à lei por arrogância, porque é mais simples negar a quem menos interessa e a quem menos “mede”.
A par das considerações exposadas, é consagrado que os princípios constitucionais têm valor normativo, e não apenas valorativo, interpretativo ou argumentativo. A natureza jurídica do princípio da moralidade administrativa é demonstrada pelo fato de que há outras normas constitucionais que afastam a consideração sobre a moralidade, no entanto, ela pode, em determinadas situações, ser afastada por outros princípios, ou afastá-los, como nos dois exemplos citados por Fernando Couto Garcia. [4]
“O primeiro exemplo é o seguinte. Servidores em greve negociam com a Administração e obtém formalmente, tanto do Chefe do Poder Executivo quanto do Chefe do Poder Legislativo, a promessa de aumento em determinado percentual, que é encaminhada ao Poder Legislativo por meio de projeto de lei de iniciativa do Poder Executivo, com urgência constitucional. Os servidores então voltam ao trabalho, desmobilizando-se, confiantes na promessa do Poder Público. Logo depois, no entanto, o Chefe do Poder Executivo retira do projeto a urgência constitucional e o Chefe do Poder Legislativo o retira da pauta, relegando-o a segundo plano, para votação apenas no ano seguinte, ainda distante. A conduta é contrária à moralidade administrativa, uma vez que as expectativas legítimas dos servidores não foram respeitadas e o Poder Público agiu com nítida deslealdade e intenção de enganá-los. No entanto, nem por isso os servidores poderão pleitear na Justiça o aumento, uma vez que o art. 37, X, da Constituição estabelece reserva absoluta de lei na matéria ("somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica"); ou seja, trata-se de hipótese em que o princípio da legalidade estrita prevalece sobre o princípio da moralidade administrativa.
“Por outro lado, a jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais oferece precioso exemplo de caso em que o princípio da moralidade administrativa prevaleceu sobre o princípio da legalidade. Servidores de uma autarquia estadual pleitearam a aplicação aos seus símbolos de vencimento de reajuste previsto por decreto estadual. A autarquia alegou que o decreto teria violado o art. 37, X, da Constituição. O Tribunal reconheceu a violação, no entanto, deu razão aos servidores, sob o fundamento de que o entendimento contrário permitiria à Administração aproveitar-se de sua própria torpeza, o que seria contrário à moralidade administrativa. Reconhecendo a colisão de princípios, o Tribunal utilizou como critério para a prevalência da moralidade administrativa o fato de que o entendimento contrário também violaria o princípio da isonomia, pois permitiria à Administração aplicar o reajuste apenas àqueles servidores que bem entendesse, como já havia feito com muitos.”
Há bem que se vê, tanto no imbróglio envolvendo a mensagem nº 7/2012, que dormita na Assembleia Legislativa Estadual, bem assim nas destinações profanas dos recursos orçamentários com destinações delimitadas, que outro entendimento não se pode convir a não ser que estamos diante de uma absoluta cegueira administrativa ou uma perversidade tamanha que se torna difícil de crer.
A premissa maior é a de que o princípio da moralidade administrativa é um princípio jurídico, pois a Constituição não tem poder para ditar normas morais, mas apenas normas jurídicas, e o princípio da moralidade serve como referência para comunicar o que é lícito e o que é ilícito, e não o que é bom e o que é mau. Como princípio jurídico que é, a moralidade administrativa deve irradiar efeitos jurídicos, conduzindo o administrador público em um percurso sem reticências, sem malabarismos, sem arroubos de pessoalidade, de transcendentalidade da coisa pública, resquícios da administração patrimonial pretérita (mas não sepultada).
É desta forma que entendo não ser moral, neste momento, a concessão da GTR a um servidor por vara nas comarcas interioranas, sobretudo quando se encontra sobre a mesa do Exmo. Sr, presidente do Tribunal de Justiça uma extensa lista de reivindicações, das duas categorias representativas dos servidores do judiciário alencarino, aptas a serem contempladas como previsão legal, direito adquirido aperfeiçoado (GEI), e a confissão de dívida elaborada pela COREI no ano de 2012, ratificada pela administração pretérita, reconhecendo a existência da disfunção anti-isonômica reinante há 9 anos no judiciário estadual.
Autor: Francisco Antonio V. de Menezes, Bacharel em Direito, Especialista em Direito da Administração Pública e Oficial de Justiça, lotado na COMAN da comarca de Crateús e coordenador regional do Sindojus-CE para a região dos Inhamuns.
[1] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 1.158.
[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 15 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 79-80.
[3] MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 24-26.
[4] COUTO GARCIA, Fernando. O princípio jurídico da moralidade administrativa. www.planalto.gov.br